quarta-feira, 22 de maio de 2013

Das Coisas que Renascem

" - Sim, basta - respondeu ele, sorrindo. - Basta para sempre (...)." 
- E então Saymon, vamos? - interrompeu a enfermeira ao chamar-me na porta.
Eu estava tão ansioso que deixei de ler o livro em sua penúltima frase e me direcionei à maca para irmos  ao centro cirúrgico.
Me incomodava aquela roupa larga e aberta atrás, além dos esparadrapos que tinham sido colados nos pelos do meu braço.
Deitado, fiquei observando as luzes do teto que passavam por mim à medida que as enfermeiras empurravam a maca pelos corredores da ala C. Naquele instante eu me lembrei de como eu fazia enquanto criança, deitando no banco detrás do carro, encostando os peitos dos meus pés no vidro gelado e observando as luzes dos postes passarem a intervalos curtos e enchendo o carro de luz dourada. Aquilo sempre me relaxou e naquele instante eu tentei fazer que o mesmo efeito viesse à tona.
Eu tremia um pouco, mas repetia o tempo inteiro: "vai ficar tudo bem, vai ficar tudo bem, Saymon."

Quarenta e cinco minutos se passaram, era então uma manhã brilhante do dia 21 de maio de 2009. Esperaram que eu voltasse do processo cirúrgico normalmente, o que de fato começou a acontecer.
Me foram feitas perguntas para constatação da memória, cheguei a fazer piadas rápidas e sonolentas. Mas mesmo eu, em concepções leigas, sabia que algo estava errado. Eu me sentia cansado, era como se uma pedra estivesse sobre o meu peito, ouvia as vozes da equipe médica de modo arrastado. Algo me chamava para um sono do qual eu não conseguia fugir, do qual eu receberia um abraço inevitável.
Tudo em volta escurecia, minha audição era inútil e eu só queria descansar, pois tudo estava pesado demais, tangível demais. Tinha enfim entendido que era hora de ir. Senti como se algo líquido me envolvesse, me tragando enquanto meu corpo flutuava em direção a algo que eu desconhecia. Mas ouvi bips, gente apressada me puxando para cima, por algum motivo eles não queriam que eu me afogasse, o que no momento eu considerava a melhor das sensações.
Tinha paz, tinha silêncio, não a balbúrdia dos meses anteriores, não os traumas até ali, nada de rupturas, ninguém que não me esperasse, algo em que eu confiava mais do que tudo.
Voltei à tona, mas flutuei por poucos instantes. Não tinha forças para permanecer ali, era claro demais, os bips que eu voltara a escutar me incomodavam. Eu queria retornar para o invólucro de paz ao qual eu tinha sido  convidado. E voltei.
Mais uma vez aquelas águas límpidas inundaram todo o quarto e a luz na abóbada cristalina era quebrada pela movimentação das pequenas ondas da parede aquosa acima de mim. Eu esperava descer mais fundo, alcançar o que eu acharia que fosse a areia do limite do meu mar pessoal. Mas fiquei ali, flutuando em meio àquela imensidão azul e silenciosa. Então entendi que eu tinha de esperar.

- Tem algo errado, doutor Ashiles - disse a doutora Fabrycia enquanto eu forçava muito a respiração, com muita dificuldade.
- E então doutor, Ruan? - disse Ashiles.
- A vaga na UTI tem de ser solicitada urgentemente, vou pedir ao enfermeiro responsável.
Exames de sangue foram exigidos, além de um ecocardiograma justamente por eu ter sido reintubado.
E a partir daí o meu prontuário dizia, apontando a evolução clínica:
"Paciente com quadro sugestivo de edema agudo de pulmão no pós-operatório imediato (após exturbação) com manutenção de baixa saturação (88-90) mesmo após O2 em máscara da macronebulização e após administração de medicamentos. Sem intercorrências do ponto de vista da cirurgia".

De onde eu estava, nada se fazia ouvir. Mas comecei a cair em sono profundo, de modo que eu me sentia voltando à tona lentamente. Enfim dormi, esperando que acontecesse o que tivesse de acontecer.
Quando acordei, a água tinha ido embora, tudo estava envolto em uma aura de sonho e pesar. Além daquelas paredes, algumas pessoas esperavam em uníssono por notícias, outras sequer sabiam, outras sequer saberiam.
Horas mais tarde voltei ao quarto, fui recebido por parentes e uma amiga, Aline, que disse com sua paz corriqueira que tinha apenas ido me ver, pois sabia que eu voltaria.
Quando o quarto ficou menos movimentado, eu pude começar a reorganizar os meus pensamentos. Eram tantas perguntas, tantas dúvidas e poucas respostas. Observei tudo o que estava ali, de forma lenta e estática. Olhei para a mesinha posta ao lado da minha maca.
Se eu não tivesse voltado, ali estaria o último perfume que eu teria usado, o último livro que eu teria lido e ainda, as roupas que eu nunca usaria. Pensei nas pessoas que eu nunca conheceria, nos lugares aonde eu nunca iria estar, nas músicas que eu nunca ouviria, nos sorrisos que já não existiriam e muito menos nas lágrimas que nunca mais rolariam. Doeu chorar, pois minha garganta ainda estava machucada e meu tórax cansado. Era como se eu tivesse voltado de uma guerra, apesar de ter mergulhado em profunda paz.
A partir dali, perguntas simples jamais me seriam respondidas, mas seria a partir destas dúvidas que as mais difíceis seriam elucidadas.
22 de maio de 2009 era o meu mais novo aniversário. Começava uma nova fase, um novo tempo. De alguma forma uma das rupturas que eu sempre pedi, tinha enfim chegado.



Enfim, quatro anos se passaram desde o meu inesperado coma. Quando fui levado ao quarto 62, na ala C, todos os boatos convergiam para "o garoto que sobreviveu". Eu carregava dentro de mim um misto de encontros e desencontros que jamais pensei suportar ou carregar, entretanto, já sabia que tudo seria diferente daquele momento em diante.
Até aqui aprendi muita coisa, e claro, ainda tenho muito o que aprender, mas me sinto muitíssimo agradecido por todas as novas alvoradas, as primaveras, os verões e os outonos. Os invernos também, por que não?
Grato por todas as pessoas que pude conhecer, por toda a música que agora faz parte de mim, por tudo o que representa vida, maturidade e continuidade.
Lembrar também que mesmo que esta data caia num anonimato de comemorações, ela sempre estará presente, de uma forma ou outra.
Mesmo inconscientemente, nunca se esquece um divisor de águas.
Afinal de contas, no tear que tece as nossas vidas, não há fios com pontas soltas. Todos estão entremeados entre si e revestidos de significado.


Ao som de "Wind", Brian Crain.

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