terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Do excesso de tudo

Pelo avançado da hora e de acordo com o seu estado de espírito, ele sentia como se décadas tivessem se passado. Vira o sol se pôr lentamente sob a sua janela; pálido, envolto em névoa e cheirando a lençol limpo.
O afago era o do travesseiro, a música eram as contas do terço que chacoalhavam minimamente a cada lufada de vento que entrava fazendo balbúrdia e brincando com o filtro dos sonhos.
Deitou-se e fitou o teto por alguns instantes enquanto as sombras se espalhavam pelo chão e se alongavam a partir dos cantos.
Ocorreu-lhe que a cada passo, a cada novo movimento, percebia que tinha se tornado um livro em branco. Não havia nada escrito nele naqueles últimos dias.
Pensou que naquele momento, tudo era um borrão, um amontoado.  
Levantou-se bruscamente, buscou entre os calhamaços dispostos de forma pouco organizada um registro do que ele havia sido há pouco na tentativa de começar uma reconstrução a partir dali. Correu dedos leves sobre os cortes dos livros que permaneceram calados; perguntou à Virgem que o olhava complacentemente, em gesso e tinta.
Engaiolou distrações, encaixotou desvios e calou dúvidas. Iriam lhe atrapalhar na fímbria daquela busca.
Foi se cansando de novo e voltou lentamente ao seu posto estofado.
Preocupou-se. Andava esgotando as forças muito rapidamente, recorrendo aos sonhos e sonos repetidamente. Achava que aquilo tinha tons de escravidão mental, ou mesmo precoce fastio.
Mas constatou que aquilo tinha nome curto e pesado. Olhou para longe, com os olhos envoltos em nuances de céu tempestuoso, com cílios crispados emoldurando um cristal quebrado. Abriu os lábios bem levemente e disse em tom glacial: "Falta".
Falta, saudade, pesar, mágoa, receio. Foi recolhendo tudo o que tinha deixado deixado cair pelo chão do quarto, amassou tudo a fim de mantê-los uniformes e compactados. Não engoliria, como o fez da última vez. Sacou o isqueiro ao lado e queimou as bordas do monturo. A labareda tristonha bruxuleou, lambendo lentamente as frustrações que chiavam e xingavam, pouco educadas.
O que ele queria agora era voltar a dormir, mas tinha atiçado o trabalho de sua mente. Percebeu que na verdade, precisava era esquecer muitas coisas. Sentou-se lentamente na borda da cama  e perguntou-se, distanciando-se mais uma vez do seu ponto de descanso: 
"Será que esquecer é a mesma coisa que ter perdido?".

Ao som de "Alone Apart", Markéta Irglová.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Sobre ser Invisível e Infinito

"Depois que a música terminou, eu disse uma coisa:  Eu me sinto infinito" - Charlie. (p. 43)
Infinito. Exatamente essa a palavra que escolheria para descrever o livro "As Vantagens de Ser Invisível", de Stephen Chbosky. Dentre os leitores mais assíduos deste blog, deve haver os que estão se perguntando o que é que a foto com os atores está fazendo num post onde me proponho a falar justamente sobre uma expressão literária.
Quando fiz a resenha sobre o livro "Um Dia", de David Nicholls, eu deixei claro que prometi que não assistiria ao filme antes de ler o livro. E assim eu fiz também com "As Vantagens". Li com bastante esforço, pois tive de devolver o livro à dona e passei a lê-lo em e-book, desconfortavelmente. Eu me esforcei bastante, nunca consegui me virar direito sem o papel na mão e bem, não é o mais indicado para uma pessoa com miopia e astigmatismo.
O que acontece é que li o livro em tempo recorde, dadas as circunstâncias. Poucas horas depois vi o filme e não poderia ter ficado mais satisfeito. Mas, num primeiro momento, nos atentemos a uma análise do mesmo. Depois partimos para a questão cinematográfica.
Sabe quando você lê um livro que simplesmente não sai da sua cabeça? Que fica horas latejando, que faz suas mãos tamborilarem pensando nas coisas que foram ditas e constatadas ou mesmo questionadas e não respondidas? Ei-lo.
O que é mais apaixonante não são em si as cartas que Charlie escreve ao seu "Querido Amigo", mas sim a sua ingenuidade e sinceridade acerca do mundo lá fora. Tive dúvidas quanto a minha predileção por ele, justamente porque cheguei a achá-lo meio tonto, um pouco invisível demais.
"Ele é invisível. (...) Você vê as coisas. Você guarda silêncio sobre elas. E você compreende." - Patrick, sobre Charlie. (p. 48).

É exatamente aí que somos apresentados às vantagens de "portar" invisibilidade. E então muitas coisas foram se destrinchando diante dos meus olhos, de modo que pude selecionar e analisar uma de cada vez, na tentativa de me reportar a qual parte da minha vida tais questões se encaixavam e consequentemente poderiam ser dadas como experiência e conhecimento de causa.
Eu me identifiquei muito, é claro. Deste modo é compreensível que tenha me encontrado tanto em Charlie, quanto em Sam e em Patrick. Eu creio que por muito tempo eu não vá conseguir expor com clareza todas as coisas que este livro me fez pensar e me proporcionou, e isso sem precisar de linguagem rebuscada ou algo do gênero.
Não há como não lembrar da escola, das dúvidas, dos receios e medos, das cicatrizes, do valor das amizades e do descobrimento de sentimentos que denotam todo um caráter. Chbosky faz uma análise maestral das rupturas e mudanças presentes nesta fase, mas de uma forma tão sutil que propõe justamente o que eu considerei uma jogada de mestre: a de se auto-analisar para assim entender a nossa própria infinitude.
Assisti ao filme com os olhos marejados do começo ao fim, justamente porque  toda vez que uma adaptação cinematográfica é anunciada, é de praxe que eu torça o nariz e espere a pior versão possível. Felizmente não foi isso o que aconteceu, de verdade. Muito fiel ao livro, o filme emocionou com delicadeza. Além disso, os detalhes que fazem de "As Vantagens" uma adaptação impar, é justamente a excelente escolha da trilha sonora. Quando li o livro eu sempre dava um longo suspiro quando as bandas que eu mais ouvi na minha adolescência eram citadas.
The Smiths me encantou mais uma vez; Cocteau Twins me embalou como sempre o fez; Sonic Youth me levou às tardes introspectivas tentando aprender violão (o que nunca deu resultado) e David Bowie me chamou para ser herói, como o fez por muitas vezes enquanto eu escrevia longas cartas para desconhecidos, assim como Charlie.
Eu me atrevo a dizer que "As Vantagens de Ser Invisível" pode ter para os jovens de hoje a mesma importância que o "Clube dos Cinco" - de John Hughes - teve para a geração dos anos 80, justamente por mostrar de forma bem elaborada o caminho da adolescência, alternando sombra e luz, silêncio e balbúrdia e ao mesmo misturando tudo, numa faina que só esta fase de mudanças e intempéries apresenta.
É sem dúvida uma história infinita e sem dúvida eu me sinto infinito agora. E acho que daqui em diante é para sempre, na melhor significação da palavra.

"Então, eu acho que somos o que somos por várias razões. E talvez nunca conheçamos a maior parte delas. Mas mesmo que não tenhamos o poder de escolher quem vamos ser, ainda podemos escolher aonde iremos a partir daqui. Ainda podemos fazer coisas. E podemos tentar ficar bem com elas." - Charlie. (p. 221).



Ao som de "Heroes", David Bowie.