quinta-feira, 14 de junho de 2012

Eu simplesmente sei...


Como fazia sempre nas noites de lua cheia, dirigiu-se para a varanda, a fim de tocar seu violoncelo enquanto tentava acompanhar os sons da noite. Fechava os olhos imaginando aquela figura terna e ao mesmo tempo muito intensa adentrando sua casa, desmistificando a mesmice, afastando as sombras que se instalaram naquele lugar.
Há dezoito anos morando ali, sentia como se fosse apenas uma extensão da mobília, do chão de linóleo que nunca precisava ser lustrado ou mesmo do cheiro das roseiras que estavam na porta há tanto tempo que pareciam ter nascido ali por conta própria. Agora, naquele momento, enquanto as notas chorosas evanesciam das cordas do instrumento, ele se lembrava das pessoas que restaram.
Já foram muitas as especiais, mas estas se perderam no tempo ou simplesmente ficaram para trás. De certo modo ele se lembrava também de quantas pessoas se julgavam peculiarmente especiais, mas sabia que elas não o eram, ainda que pensassem o contrário.
Mesmo se julgando rabugento, se impressionara por nunca ter perdido a capacidade de sorrir, de sonhar e persistir. Gostava de se sentar em sua velha poltrona perto das janelas de vidro verde enquanto observava as pessoas passarem pela porta de sua casa, rente a cerca de madeira branca. Àquela época seus lilases cresciam demasiadamente, em descompasso total com seu tempo de flora e, além disso, apresentavam flores jamais vistas, sendo purpúreas ao centro, arroxeadas nas extremidades e pareciam ter luz própria. Sua presença e sua casa geraram lendas e boatos desde que se instalara ali. Não tardou para que as misteriosas flores atraíssem os jovens que vinham com o intuito de rogar por amores abaixo dos galhos frondosos e repletos de perfumados lilases. Certa vez teve a oportunidade de assistir a um casal que depois de se coroar com aquelas flores, proferiram ali mesmo seus votos de casamento.
“Feitiçaria” uns diziam, “fenômeno biológico” outros atestavam, “ele as rega com sangue” cochichavam as velhas da viela. Ele apenas se ria e continuava olhando através dos vidros verdes que transformavam o mundo lá fora em esmeralda. Ele sempre gostou do status de lenda que lhe foi dado, pois, se ele era lenda, era envolto em mistérios e magias. Se ele era lenda, poderia correr livre junto ao vento, buscando as histórias perdidas no tempo. Se ele era lenda, pelo desejo incontido que há nele, poderia tornar possível o encontro entre a Lua e o Sol, diminuindo o entrave da dor. Então, sendo lenda poderia cavalgar pelos sonhos, velejar pelos mares da sua saudade passeando pelo pensamento de quem quer que almeje. Sendo lenda, poderia brincar nas alegrias de quem o espera, sendo parte destas emoções caminhando tranquilo pela ilusão, sem medo algum de machucar-se. Sendo lenda, poderia escrever seu nome na vida de quem quisesse e vezenquando “ser pra sempre” na vida de muitos.
Às vezes, junto aos sons da noite, poderia jurar que ouvia o som de notas de piano que pareciam falar de um amor verdadeiro, pungente e próximo. Seus dedos enrijeciam, seus olhos se fechavam e ele sentia que aquela quimera iminente era sua. “Não tem medo da noite?”, lhe perguntavam as crianças por entre as roseiras acerca de seus passeios na floresta que adornava seu quintal, dando aspecto de infinitude. “Ela é minha amiga”, respondia ele com os olhos perdidos em algum pedido que parecia sempre saltar de seus lábios.
Foi naquela mesma varanda que enfim a noite lhe trouxe o recado que ele esperava há tanto tempo. Naquela mesma varanda onde fechava os olhos abaixo da lua cheia e balbuciava para o vento da noite dizendo que ele esperava, que estava ali aguardando um amor que se curvasse ao tempo, naquela mesma varanda que seu corpo lançava espasmos no tempo e no espaço da noite, sendo diluídos ao longe pela brisa dançante. As árvores sabiam, os lilases, sabia ele, estavam floridos assim, pois avisavam de uma certa chegada.
Como que feitiço, pôde ouvir galopes na floresta, vento que sibilava certa chegada, amor que se desprendia das folhagens e acompanhava a figura que adentrava o seu jardim. Correu para o espelho para se arrumar a fim de receber sua visita de forma apresentável. Olhou através dos vidros verdes, viu os lilases levitarem com a rajada súbita. Estava chegando, ele sabia. E então o pequeno portão se abriu, rangendo timidamente. Adentrou por ele valorosa mariposa, trazendo o cheiro muito doce e quase irritante das flores que ali cresciam em demasia como que por feitiçaria, fenômeno biológico ou sangue em suas raízes. Pousou delicada em seu ombro e naquele instante, observando a escuridão das árvores entrecortada pelo luar, ele pôde ver os olhos que o miravam dentro da floresta, sedentos, esperando por ele, mas sem poder se aproximar ainda.
Fechou suas mãos como um pequeno templo e balbuciou para a mariposa que repousava esperando entre os seus dedos: “Diga a ele que o espero, que estou aqui e que para onde for meu coração será dele”.
Liberta de sua pequenina gaiola, a mariposa de asas frondosas e cintilantes adentrou a floresta, levando em seu voo a notícia e a certeza da espera de uma chegada.
Sorriu ele, dizendo para a lua que derramava sua luz prateada, salpicando sua pele de chuva etérea: “Eu espero pelo amor e agora sei que ele está vindo até mim”.

Ao som dessa belezinha aqui: A Loveless Romantic

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Pós Escrito.


Vazio. Páginas e páginas de palavras sem cor. Centenas de supostos sentimentos vencidos, uma escrita engessada, apelativa, escandalosa. Para tantos o valor das palavras é tão somente o impacto que causam em outrem. E os motivos são banais.
O valor de escrever não está em impressionar ninguém. Quem deve surpreender-se é quem escreve, a este basta somente que suas palavras lhe valham o que significam para si, nunca para outros.
O fardo pesado da sinceridade é carregado por poucos. Têm os que falam de assuntos mais picantes, ou de ficções cruéis, mas nem o domínio completo da técnica e do vocabulário torna esse tipo de texto suportável. Nem todo talento do mundo é capaz de convencer quando o sentimento não é legítimo.
Por mais simples que seja o sentimento, por mais simples que sejam as palavras, se é legítimo, há talento de verdade. As linhas tortas impregnadas de saudade fascinam. As dores encharcadas de lágrimas comovem, as esperanças cultivadas veementemente convencem. Escrever é, antes de tudo, descobrir-se a si mesmo. O que os outros vão achar disso, não importa.

Ao som de "Lost Song", Ôlafur Arnalds.