terça-feira, 15 de março de 2011

Da janela ao corredor

Naquele instante,  sua mente fazia rodopios em volta da imagem de um amigo que a muito já não via. Apesar de distantes e da forma misteriosa de como ele sumiu, ela sempre soube que ele não estava morto, contradizendo a boataria que pairava. Emilie caminhou pela calçada juncada de folhas mortas, enquanto observava as pessoas começarem a se mover lentamente pela manhã fria, liberando pequenas nuvens densas pelas narinas e bocas. Ela gostava de manhãs frias ou chuvosas e esse era só um dos pontos em comum com o seu amigo de longa data. Adentrou um pequeno pub, simples, mas lindamente decorado em estilo mullet, bem rock setentão. Sentou-se bem ao fundo do bar, de modo que dali pudesse observar o movimento dos transeuntes na rua. Logo, logo a pessoa por quem ela esperava chegaria. Enquanto isso ela brincava com o dedo molhado fazendo movimentos circulares na borda da taça. A melodia cristalina enchia o ar, mas ao som de Nick Drake, aquilo era um mero arranjo musical que adensava a imagem dele na sua mente.

Christopher sentou-se muito sobressaltado. Odiava acordar com um susto pois a vertigem se estendia por horas. Mas agora que sua visão tornava-se lentamente menos embaçada, o que ocupava sua percepção era um misto de saudade e admiração. Perdera a conta de quanto tempo vira Sophie e agora ela estava ali, oferecendo-lhe bolinhos e suco com o mesmo sorriso maroto de sempre.  O rosto pálido com redondos olhos verdes e um cabelo tão negro e brilhante que parecia se fundir a sua jaqueta de vinil. Ela sentou-se sobre suas pernas e olhou-o com demasiada ternura, enquanto retirava de seus olhos algumas mexas de cabelo amassadas pela noite turbulenta de sono. 
Sophie era uma das poucas pessoas que ainda conseguiam confortar Christopher, de modo que perto dela, sentia-se tão anestesiado que se esquecia de diversas coisas. Estava entorpecido pela presença daquela garota que já não aparecia a muito tempo e que mesmo assim mantinha a mesmíssima capacidade de controlar as emoções de cada um a seu redor. Só mais uma das peculiaridades de Sophie. 
Com um movimento lânguido e preciso ela estendeu uma das mãos para apanhar um bolinho do prato, mas demorou-se ali brincando com as gotas de chocolate na superfície da guloseima. Olhou ao redor, analisou o quarto rapidamente e demorou-se nos olhos de Christopher. Até então ambos não tinham falado nada e foi então que ela enfim disse:
- Você não sabe o quanto esta viajem até aqui me custou caro! - Ela disse com seu sorriso familiarmente brincalhão, enquanto dava um tapinha de leve no rosto dele.
- Ah é? Mas eu sei que eu custo caro... Mas, como é que me achou?
- Aaah, essa informação é sigilosa! E não há nenhuma cláusula em meu contrato que me permita revelá-la!
- Sophie, eu sei dos seus truques, tá? Sei muito bem dos seus chips, das suas agências espiãs... - Retrucou ele com ar de superioridade, dando continuidade a brincadeira.
- Tá bom, tá bom... Mas, tem uma coisa que eu quero muito te pedir, Christopher...
- Diga, se eu for útil eu ajudo e você sabe que sim!
- Ah, então tudo bem... É que - ela se demorou enquanto baixava os olhos e os fixava na borda da manga da camiseta do rapaz. Viu uma pequena mancha comprida arroxeada que se estendia por dentro da camiseta, abaixo do pano, na pele esbranquiçada dele.
Christopher se sentiu incomodado, puxou as mangas na tentativa de esconder os desenhos grotescos no seu braço. 
- Pára, Sophie...
- Eu não acredito! - Os olhos de Sophie foram se abrindo mais e mais  enquanto ela expressava admiração e espanto.
- Ah, é que... Isso não foi nada, é que... Machuquei feio...
- Christopher, eu já fiz isso, você se lembra? Não tente me enganar... E você sabe que eu nunca, jamais vou te crucificar, até porque você cortou do jeito certo!
- Ah...  
O balbucio de Christopher soou como um estranho obrigado. E então pensou que realmente Sophie não era e jamais seria como as outras garotas. Pensou que queria reunir várias pessoas naquele momento, mas ela era um achado de tudo o que ele gostava, fazendo assim com que se sentisse satisfeito. Ela levantou-se, rodopiou pelo quarto, olhou marota as paredes e sorriu de canto, já começando a maquinar:
- Bom, eu já analisei a casa e ela é bonita... A gente pode fazer muitas coisas sabia? Já montei milhares de formas de decoração aqui na minha mente e eu sei que você sabe cuidar muito bem do jardim e... - Ela percebeu o olhar meio perdido de Christopher e entendeu que no momento ele só queria acordar, ou mesmo que ela parasse de falar e apenas o abraçasse. Mas ela só o olhou de esguelha, cerrou seus lábios com o indicador e disse-lhe ao ouvido:
- Você precisa escovar os dentes, é sério.
Christopher não conseguiu conter o sorriso e levantou-se lentamente para enfim se dirigir ao banheiro.


Especialmente naquela manhã, o pub não estava apinhado de depressivos que cantavam alto. Emilie observava cada mudança durante o passar dos minutos. Àquele tempo ela também crescera, e até seu silêncio se tornara mais adulto, mais contido, se é que ele pode ter sido eufórico algum dia. Fez desenhos desconexos num guardanapo próximo, olhou o relógio algumas vezes, evitou cheirar as flores que se esgueiravam pela janela logo atrás de si, mesmo tendo-as acariciado algumas vezes. Plantas. Elas sempre lembrariam ele. 
Mas foi enfim num momento de distração que ela chegou, meio descontraída, cumprimentando algumas personalidades ali presentes, trazendo um pouco de chuva em seu casaco e com o mesmo ar descontraído de três anos atrás.
- Emillie?
A garota morena de cabelos compridos e um pouco desajeitada sobressaltou-se e entornou a taça de absinto sobre a mesa. Ao olhar para cima, deparou-se com os olhos e uma face morena, emoldurados por cabelos levemente arroxeados. Agora eles não eram mais cacheados, eram curtos, lisos e suas extremidades apontavam para várias direções, minuciosamente repicadas. Ela levantou-se e falou, disfarçando sua surpresa:
- Enfim Konstantine! Como é que vai?
Ambas se abraçaram e sentiram algo estranho, como se alguma coisa estivesse sendo reatada em algum lugar de suas mentes. As pontas do cabelo de Konstantine fizeram cócegas na ponta do nariz dela, que então o coçou fazendo movimentos rápidos de um lado para o outro. Entre sorrisos, Konstantine disse:
- Você ainda faz isso como o Christopher fazia!


Sophie caminhou até a porta do banheiro e encostou-se no portal, olhando Christopher escovar os dentes. Esperou que ele terminasse até perguntar:
- Você costuma contar seus passos, Christopher?
Ele olhou-a um pouco indagador e enfim disse:
- Sim, as vezes...
- Vem aqui, então... - ela segurou a mão do rapaz e endireitou seus ombros, segurou sua cabeça e girou-a lentamente para o lado e continuou seu raciocínio - Está vendo aquela janela? 
Christopher viu uma janela grande, de vidro estranhamente bem limpo, no fim do corredor. Ela derramava a luz pálida da manhã que lambia parte das paredes e boa parte do assoalho lustroso.
- Sim, eu a vi e gostei dela, me lembra arquitetura gótica e...
- Você já reparou que daqui até lá totalizam-se vinte passos?
- Eu nunca contei, Sophie e...
- É que eu achei legal o número de passos daqui até lá serem exatamente o número da sua idade. Vamos fazer uma coisa? Eu quero que você caminhe até lá de olhos fechados, e que vá pensando em coisas diferentes a medida que avança.
- Mas pra quê isso, Sophie?
- Eu só quero ver como você se sente, vai, vamos lá, você não vai dar de cara com o vidro, eu contei! São realmente vinte passos! 
Christopher aceitou a proposta, e pensou que poderia ser interessante. Então ele fechou os olhos e começou a caminhar e instantaneamente, a pensar junto.


As distintas moças se sentaram e ficaram pensando e relembrando diversas coisas silenciosamente, selecionando mentalmente sobre quais falariam, mas Emilie adiantou-se:
- Eu sei que ele está por perto, Konstantine.
- Eu também sei, Emilie. Casas assim sempre foram a cara do Christopher.
Ambas olharam para o fim da rua onde havia uma casa antiga porém muito bem conservada, mas que por algum motivo fora vendida a um preço muito baixo. Cerca em vez de muro, jardim grande, rosas na entrada, um Ipê grande que crescia nos fundos. A casa erguia-se em tons amarelados, com grandes janelas de vidro e uma central, bem acima de todas, na parte mais alta da construção e era decorada com floreios góticos.
- Eu acho que nós temos de ir lá, ou morreremos de curiosidade - disse Konstantine.
- Ou de saudade... - sentenciou Emilie.
E então as duas levantaram-se e se dirigiram para a frente do pub, parando no balcão para que Emilie pagasse sua taça de absinto da qual não sorveu nenhuma gota sequer. Pararam, olharam para a casa e respiraram fundo.


Várias coisas começaram a dançar na mente de Christopher. A medida que avançava ele se sentia leve como fumaça, ía mantendo-se imutável, sem cores diferentes e sem nenhuma pressa. Sentia cheiros e gostos mas perdera as contas de quantas portas deveria fechar para eliminar alguns que lhe traziam nostalgia em demasia. Foi caminhando como se fosse encontrar-se com o desconhecido e sem nenhuma hora para voltar. Agora entendia o por que de Sophie pedir para que ele fechasse os olhos, afinal assim podia ver um mundo que ninguém mais enxergava. Era nele que muitas vezes ele se abrigava, mas que já a algum tempo não visitava, tinha guardado-o logo abaixo de seu travesseiro. Ela queria que ele reatasse com tudo o que era dele, com tudo o que ele havia abandonado, queria que ele se importasse de novo com tudo o que existia ao seu redor.
Então Christopher terminou a contagem e abriu os olhos. Seu coração disparou, afinal a visão era realmente bonita dali de cima. Via as roseiras em flor, o jardim gramado, a cerca e além dela a rua juncada de folhas mortas e avermelhadas com um céu arroxeado pelas nuvens carregadas que eram levadas vagarosamente pelo vento frio. Mas o seu coração quase entrou em colapso quando o mesmo avistou dois pedaços de seu mundo aproximarem-se lentamente, lado a lado, do portão se sua casa. 
Entendera o ritual agora. Tinha invocado seu mundo direto para a sua morada.


Continua...


Ao som de "20 Passos", Agridoce.